À medida que ia avançando filas na sala de aula, Gabriel Potra percebia que tinha um problema de visão. “Até aos sete anos, via bem. Como era assim malandreco, estava sempre nas mesas de trás, mas depois comecei a sentar-me cada vez mais à frente e a professora não achou normal e falou com os meus pais. Foi aí que fui ao médico”, conta o atleta, um dos quatro reforços da nova secção de atletismo adaptado, recém criada pelo Clube. Aí, foi-lhe detectada a doença de Stargadt, um problema congénito que só se manifestou aos sete anos e que lhe matou as células da vista. Mas nem isso o impediu de ser um dos mais medalhados atletas portugueses na modalidade – tem quatro participações nos Jogos Paralímpicos, tendo ganho a medalha de ouro em Sidney, nos 200m e 4x400m. “Tive o meu primeiro choque aos 18 anos, quando não pude tirar a carta de condução, porque sempre adorei automóveis. O meu pai punha-me a conduzir ao colo dele quando era pequeno e ficou-me o ‘bichinho’. Não poder conduzir é um desgosto, mas colmatei tudo com o atletismo, com os êxitos, com a possibilidade de praticar a modalidade de uma forma livre, com objectivos”.
Iniciou-se na modalidade aos 11 anos através de um projecto municipal nas escolas do Montijo – de onde é natural. “Havia uns técnicos que avaliavam as apetências dos miúdos para o desporto e disseram-me que tinha muita capacidade para o atletismo, porque era extremamente rápido e tinha muita força”. Gabriel iniciou-se na modalidade, mas fora do desporto adaptado – que só chegou aos 16 anos, quando se mudou para Lisboa e teve contacto com a ACAPO. Ainda assim, dadas as suas capacidades atléticas, teve convites para competir no desporto regular, acabando por fazê--lo em todos os Clubes que representou, nomeadamente no Belenenses, no Marítimo e no NAC – Núcleo de Atletismo de Cucujães.
Gabriel é o mais medalhado do lote de quatro atletas. Foi recordista do Mundo de 400m durante dez anos – tendo sido ultrapassado apenas nos Paralímpicos de Londres, em 2012, mantendo ainda o recorde da Europa e dos Campeonatos do Mundo – e além das duas medalhas de ouro conquistadas nos Jogos de Sidney, foi medalhado em sete Mundiais e quatro europeus. Mas a melhor recordação é, claro, os Jogos de 2000. “Tinha havido um Europeu em Lisboa onde obtive excelentes resultados [medalha de ouro em todas as provas: 100m, 200m, 400m e 4x400m] e o estádio estava vazio. Quando cheguei a Sidney, estava a entrar para a primeira competição, no acesso do túnel para a pista, e senti o barulho de 80 e tal mil pessoas. O meu coração começou a bater tanto, tanto, que nem sabia como ia conseguir correr”, recorda o atleta, que esperava o sucesso alcançado nesse ano. “Estava muito bem. Tinha uma confiança enorme no meu trabalho e conhecia bem os adversários. Mas claro que não era uma certeza – se há coisa que a alta competição me ensinou é a incerteza do resultado”.
E a incerteza das lesões – acrescentamos. Pouco antes de chegar aos Jogos de Atenas, em 2004, Gabriel sofreu uma pubalgia grave que o forçou a três cirurgias e a diminuir um pouco o ritmo – por exemplo, nesses Jogos ficou em 9.º nos 200m. “Sou um atleta muito dedicado, mas nunca tive o acompanhamento devido no pós-treino. Essa é, por vezes, a grande falha, por causa dos clubes, da falta de apoios, de dinheiro. Nos anos 2000 e pouco, os atletas também não tinham tanto apoio...”, esclarece Gabriel, que já atingiu os mínimos para os Paralímpicos de 2016 em Junho passado, no Meeting de Paris, e que em 2013 decidiu colocar um ponto final na carreira. “Precisava de ser valorizado, como pessoa e como atleta e no clube onde estava, o Benfica, não sentia essa valorização. O Sporting apanhou-me nesta fase de abandono e quero regressar em grande com este projecto”, sublinha. A profissionalização é o grande sonho, mas enquanto não é possível, o atleta desmultiplica-se em várias actividades: é dono de um ginásio e assistente operacional na Câmara Municipal do Montijo – onde neste momento é treinador de boccia sénior. “Fomos vice-campeões nacionais no ano passado e campeões há dois anos, no MEO Arena. Embora nunca tenha jogado, tive de fazer formação. Mas acho que não estou assim tão mal...”.